Sociedade dos Corações Partidos - Um conto especial da autora Ana Luísa Beleza



A expectativa é o pior castigo que podemos impor a alguém. O ser humano é capaz de lidar com absolutamente qualquer sentimento: tristeza, saudade, um amor não correspondido e até mesmo uma vida inteira sem nenhuma emoção, mas se tem uma coisa que ninguém ainda aprendeu a tirar de letra foi a tal da expectativa frustrada. É muito mais fácil quando não se espera nada. A esperança pode mover um mundo, mas também aprisiona milhões de almas, confiantes em possibilidades que por vezes jamais se realizam. Maria Carolina sentiu isso na pele. Presidente da Comissão de Formatura do Curso de Ciências Biológicas da PUC Minas, ela havia organizado um inédito e badaladíssimo baile de dia dos namorados, com a intenção de arrecadar verbas para a festa de formatura. O baile dos namorados andava fazendo tamanho sucesso que não se falava em outra coisa no grupo de WhatsApp da turma. Estudantes de outros cursos já brigavam para comprar os convites vendidos pelos formandos. A ideia viera da única data disponível no salão do clube gerenciado por seu pai: 12 de junho. Para não precisar pagar aluguel em outro lugar, Carol logo tivera a ideia de organizar um baile temático. Amante de clichês americanos, daqueles que o casal sempre encontra o “felizes para sempre” nos bailes do colegial, a jovem se sentia mais do que preparada para reproduzir tudo aquilo que aprendera nos muitos filmes da sessão da tarde. Como requisito, é claro, não podia faltar a única exigência unânime de todas as boas tramas: só podia entrar com um par. Pouco importava se seria um amigo, um parente ou um par romântico, o importante era ter companhia, o que viria a calhar, já que seriam dois convites vendidos de uma única vez. A expectativa estava lá no alto e Carol sabia que entraria para a história da faculdade, já prevendo que o evento seria repetido anualmente, por gerações. Tudo corria com perfeição, até que, enquanto dava os retoques finais na maquiagem, já pronta para o esperado dia, recebera uma fria mensagem de texto do seu até então namorado, contendo uma única frase: “irei ao baile com a Jeniffer”. 

Carol entrou no carro que já a esperava na porta. Havia deixado a corrida agendada pelo aplicativo no dia anterior, tudo para não se atrasar. 

― Nosso destino é o Aquarius Tênis Clube, certo? ― perguntou o motorista, já iniciando a viagem.

― Não, me leve para qualquer lugar em direção contrária.

― Não entendi, moça. Para aonde devemos ir?

― O senhor deve rodar muito, me leve para qualquer bar o mais longe possível do idiota do Otávio ― Carol soluçou, ao pronunciar o nome do agora ex-namorado.

― Acho que eu sei o que fazer.

Maria Carolina até cogitou o risco daquele arroubo, mas a raiva era tanta que a vontade de sumir do mapa a deixara inconsequente. Não era aquele seu perfil, mas ser abandonada daquela forma também não era algo a que estivesse acostumada. 

Otávio Figueiredo era o monitor gato de microbiologia da faculdade. Antes veterano da graduação, agora mestrando, o bonitão arrancava suspiros por onde passava. Quando o rapaz estava em seu último semestre, Carol ainda cursava o segundo período, mas, já popular, fora convidada para a festa da turma dele. Desde então, começaram a namorar. Tudo bem que nos últimos tempos mais brigavam do que tudo e, especialmente na última semana, chegaram a falar em dar um tempo no relacionamento, mas daí a não só deixá-la sem par no baile mais importante de sua vida, como ainda por cima aparecer com outra, era algo que ela não esperava. 

― Chegamos ― o motorista anunciou. 

Até então imersa em lembranças e afundada em lágrimas, a jovem até se esquecera do inusitado pedido ao condutor do carro. Sacou uma nota gorda da carteira e entregou ao homem, insistindo para que ele ficasse com o troco. Após descer, ouviu um último pedido:

― Procure o frade e diga que mando um abraço.

― Frade? Eu não acredito que você me trouxe a uma igreja! ― Carol esbravejou sozinha, já que, àquela altura, o carro já havia partido.

Olhando para o entorno, percebeu que estava em um lugar ermo, preenchido por um único imóvel, de aparência meio rústica e que lembrava um bar de filme de faroeste. No alto, destacava-se um tremeluzente letreiro: “Sociedade dos corações partidos”. Maria Carolina pegou o celular para pedir outro carro e ir imediatamente embora, mas verificou que estava sem sinal e sem internet. Sem a menor ideia de onde estava, não teve outra alternativa senão entrar naquele exótico estabelecimento. 

― Que raio de lugar é este? ― Ela se perguntou, tão logo entrou. 

Se do lado de fora a aparência era de um lugar tosco e malfeito, o interior era o oposto. A decoração rústica era de extremo bom gosto e elegância, tornando o ambiente acolhedor e sofisticado, mas sem perder o aspecto campestre. Os móveis eram todos de madeira crua e com flores do campo espalhadas por todos os lados. O bar, bem ao centro, fora construído sob uma pérgola, toda envolta por folhagem, que formava um maravilhoso cercado verde. 

Maria Carolina deu uma conferida no visual através do enorme espelho atrás do balcão de onde o barman preparava alguns drinks. Ainda com o vestido vermelho, com decote coração e saia de tule que caía até pouco acima do joelho, a garota estava pronta para os mais variados tipos de evento. Mesmo o choro contínuo desde sua saída de casa não abalara a maquiagem, que pelo visto era de excelente qualidade, apesar de comprada em uma loja de produtos variados do centro da cidade. 

― Boa noite, Frederico! ― Exclamou, chamando a atenção do homem que preparava as bebidas, cujo nome estava exposto na placa de metal presa à camisa social branca. ― Eu gostaria de falar com o frade.

― Está falando com ele! 

― Então frade é o barman? Cada hora que passa eu entendo menos esse lugar. Você pode pedir um táxi para mim, por favor, antes que apareçam dançarinas de cancan vestidas de freira? 

Frederico deu uma sonora gargalhada.

― Certa vez eu resolvi cortar meu próprio cabelo, só que não deu muito certo e eu fiquei com uma falha enorme bem no meio da cabeça, parecido com aquele corte dos monges, sabe? Não demorou muito para que eu ganhasse o apelido de Fred, o frade. E então, o que vai beber hoje? ― empurrou o cardápio.

Carol segurou o riso. Notando que realmente estava com sede, tentou se concentrar na enorme variedade de bebidas a sua frente. Nenhuma trazia qualquer descrição dos ingredientes, mas apenas seus nomes, a grande maioria fazendo referência a músicas conhecidas:

Abandonada por você 
A dor desse amor 
A lua me traiu 
Ai ai ai é amor 
Chega de saudade 
Coração vagabundo 
Corazón partio 
Eu vou morrer sozinho 
Meu cupido me odeia 
Na página de amigos 
Nosso estranho amor 
Nuvem de lágrimas 
Não sei porque você se foi 
Nunca mais eu vou amar 
Peito vazio 
Se eu não te amasse tanto assim 
Um beijo e nada mais 
Você não me ensinou a te esquecer 
Volta

― Definitivamente vou querer um “abandonada por você” ― a universitária falou, após analisar o menu.

― Puro? Pode misturar quantas opções desejar.

― É o suficiente.

― Interessante. Quem pede essa bebida assim, pura, não costuma voltar no meu bar ― o homem falou, pegando uma garrafa da prateleira.

Ao ouvir o homem, Carol olhou hesitante para seu copo, agora cheio.

― Não precisa ficar com medo. Não tem nada a ver com o sabor. Eu me garanto no que faço. Tem a ver com o seu tipo de coração partido. Você não está sofrendo como acha que está. Só teve seu orgulho ferido ― Frade explicou.

― Então além de preparar bebidas você ainda analisa os clientes? ― Maria Carolina perguntou, achando graça e tentando embarcar naquela loucura.

― Todo dono de bar é um pouco terapeuta. Eu já sei exatamente que tipo de gente vem uma única vez, quem vai e volta e quem fica por muitos anos.

Carol deu uma generosa golada na bebida.

― Você diz que algumas pessoas vão e voltam e outras tantas nunca saem. Quantas vezes um coração partido pode ser curado? ― a jovem perguntou.

― Eu não sei. Eu estou aqui há muitos anos, de fato já vi muitos sucumbirem, mas já conheci um número muito maior de gente que nunca mais precisou voltar. Minha teoria é que enquanto houver uma fagulha de amor, um coração ainda pode se curar.

Maria Carolina não soube ao certo o que tinha naquele drink, mas não notou nenhum teor alcoólico. Fato é que, alguns copos depois, ela se sentiu inexplicavelmente melhor. Talvez houvesse algo mágico ali ou talvez tenha sido a longa sessão de desabafo a que submetera o pobre Fred, ou melhor, Frade.

― É isso. Nós já não estávamos nos falando mais, eu sei. E teve esse papo de dar um tempo, mas não chegamos a oficializar o término. Acho que ele devia ter ao menos esperado o baile para me dar o pé na bunda, você não acha?

― Como eu disse antes, você está só com o orgulho ferido, caríssima. Você gostava do status de namorar Otávio Figueiredo, mas nem de longe amava Otávio Figueiredo. Há quanto tempo não sentia mais aquele friozinho na barriga por ele?

Carol não respondeu. Ao menos não para o homem, já que, para si, a pergunta estava mais do que respondida.

― Ao dia dos namorados! ― ela ergueu o copo, brindando sozinha.

Um homem, que acabara de chegar, sentou-se ao lado de Maria Carolina, conferindo a data no visor do celular:

― Ah, é verdade, hoje é dia dos namorados.

― Achei que todo mundo aqui estivesse na fossa ― Carol resmungou, mais alto do que pretendia.

― Há várias maneiras de se partir um coração ― Frade respondeu, virando-se, em seguida, para o novo cliente ― Bem-vindo de volta, Igor. Vai querer o quê?

― O mesmo de ontem, meu amigo. “Não sei por que você se foi” ― o homem suspirou.

― A gatinha dele fugiu de casa. Ela estava muito doente e dificilmente sobreviveu sem os remédios ― Frade fez questão de explicar o caso para a nova amiga. 

― Poxa, sinto muito ― Carol disse, com sinceridade ― Eu tinha um gatinho que viveu muitos anos. Uma vez, já bem velhinho, Domênico sumiu também, sendo que ele nunca tinha saído de casa. Minha irmã o encontrou no quintal do vizinho, perto de uma fresta em que conseguia ver nossa casa. Ele não quis morrer na nossa frente, mas quis ficar por perto.

O homem deu um pesado suspiro, mas sorriu, bem de leve. 

― Acho que é exatamente o tipo de coisa que a Magnólia faria por mim. 

Pela primeira vez naquela noite Igor e Carol se encararam. 

Fred, o Frade, abriu um sorriso. Já havia visto aquela cena algumas vezes: as pupilas dilatando, a respiração oscilante e o leve arrepio que só olhos treinados conseguiam enxergar. Existem várias maneiras de duas almas afins se reconhecerem, mas a conexão pelos olhos era sempre a mais poética.

― Então, você vem sempre aqui? ― Igor decidiu puxar assunto com a pergunta mais clichê dentre todas aquelas que embalam as paqueras desde os mais remotos tempos.

Carol, dessa vez, não conteve o riso.

― Tem precisamente quarenta e cinco minutos ― respondeu, surpresa ao perceber que ainda era cedo, quando parecia que havia passado uma eternidade.

Dois copos cheios de um drink que não estava no cardápio surgiram na frente de Igor e Maria Carolina. Segundo o dono do bar, era cortesia da casa. Os dois brindaram e beberam, enquanto aproveitavam para se conhecer um pouco mais. Passados poucos minutos de conversa, Frade os interrompeu.

― Seu táxi chegou, Carol.

― Táxi? ― Ela perguntou, confusa.

― Você chegou aqui me pedindo para chamá-lo ― o barman lembrou ― E você tem uma festa para ir.

― Não é uma boa ideia. Eu nem tenho um par mais.

― Mas é claro que é uma boa ideia. Você organizou tudo. Eu até iria contigo, mas não posso deixar meu bar. Igor, você pode acompanhar minha amiga?

― Vai ser um prazer ― Igor respondeu, com entusiasmo. 

Carol hesitou. Talvez fosse cedo demais para ter um novo encontro, mas, se deixasse para depois, talvez pudesse ser tarde demais. Mas quem foi que disse que existe um prazo para recomeços? O tempo é, no fim das contas, uma mera construção humana para tentar controlar a vida. 

― Aonde vamos mesmo? ― Igor finalmente perguntou, despertando a moça para a realidade.

Carol sorriu:

― Para o baile dos namorados.

o, quando parecia que havia passado uma eternidade.

Dois copos cheios de um drink que não estava no cardápio surgiram na frente de Igor e Maria Carolina. Segundo o dono do bar, era cortesia da casa. Os dois brindaram e beberam, enquanto aproveitavam para se conhecer um pouco mais. Passados poucos minutos de conversa, Frade os interrompeu.

― Seu táxi chegou, Carol.

― Táxi? ― Ela perguntou, confusa.

― Você chegou aqui me pedindo para chamá-lo ― o barman lembrou ― E você tem uma festa para ir.

― Não é uma boa ideia. Eu nem tenho um par mais.

― Mas é claro que é uma boa ideia. Você organizou tudo. Eu até iria contigo, mas não posso deixar meu bar. Igor, você pode acompanhar minha amiga?

― Vai ser um prazer ― Igor respondeu, com entusiasmo. 

Carol hesitou. Talvez fosse cedo demais para ter um novo encontro, mas, se deixasse para depois, talvez pudesse ser tarde demais. Mas quem foi que disse que existe um prazo para recomeços? O tempo é, no fim das contas, uma mera construção humana para tentar controlar a vida. 

― Aonde vamos mesmo? ― Igor finalmente perguntou, despertando a moça para a realidade.

Carol sorriu:

― Para o baile dos namorados.

Um conto escrito gentilmente pela autora Ana Luísa Beleza, especialmente para o blog A Culpa é dos Leitores. Qualquer reprodução sem o devido consentimento da autora quebra as regras de direitos autorais. 



15 comentários:

  1. Oi Bia

    Eu não conhecia a autora e nem o conto e adorei ele, achei ele bem fofo ahhhh e adorei os nomes das bebidas kkkkkkk sem dúvidas eu queria conhecer esse bar! E o conto está duplicado na postagem!!

    Beijos!
    Eita Já Li

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    1. Oi Alisson!!
      Obrigada por avisar, conto revisado *-*
      hahaha bem criativo esses nomes né non?
      Beijos e volte sempre.

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  2. Ana arrasa sempre. Tem o dom de ser sempre muito meiga e delicada em seus textos e livros.
    Preciso desse bar urgente rsrs

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    1. hahahah Será que é pedir muito para que esse bar seja real?
      Beeijos

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  3. Simplesmente amei!!! Tudo que a Analu escreve fica assim, maravilhoso 😍

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    1. Concordo plenamente!!
      Obrigada pela visita! Volte sempre S2

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  4. Oi Bia
    tudo bem ?

    Não conhecia a Ana Luisa e suas palavras.
    Mas que texto !!!
    Adoro personagem Carol kkk

    Bjos e Cheiros
    Livreando

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    1. Oi sua linda!!
      Fico feliz que tenha curtido o conto. Beeijos

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  5. Olá, tudo bem? Adorei demais o conto, ainda mais combinando com a temática do dia haha uma escrita leve e cheia de acontecimentos, amei mesmo! E não conhecia a autora!
    Beijos

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    1. Oi amore!!
      A autora é maravilhosa. Admiro o seu trabalho e claro, a pessoa que ela é.
      Fico feliz que tenha curtido.

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  6. Sem palavras, ficou muito bom mesmo! Prende a atenção do inicio ao fim e descreve bem o que a personagem pensa e sente. Ri muito do motivo do dono do bar ser chamado de Frade kkk e adorei o final de como o Taxi chegou na hora certa, porque o cara já sabia o que aconteceria. Frade melhor personagem! E por fim achei muito legal e poético até a forma como a autora menciona o Tempo.

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    1. Obrigada pela visita!! Fico feliz que tenha curtido o conto (a Ana é maravilhosa). Beijos

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  7. Oiii, Bia, tudo bem?
    Eu não conhecia a autora e fiquei com o meu coração transbordando de amor por esse enredo tão fofinho, vontade de ler mais e mais contos dessa maneira. Como não se apaixonar? E adorei a sua ideia de colocar aqui o conto!
    Beijinhos

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    1. Impossível não se apaixonar. Mais impossível ainda é não desejar um cardápio com essas bebidas hahaha. Obrigada pela visita!!!

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  8. Que conto mais fofo! Eu ainda não conhecia a autora e achei a escrita dela bem gostosinha, já fiquei curiosa para ler mais textos da Ana Luiza! O conto está uma graça, leve e envolvente

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